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Sobre o tempo das coisas, com Nestor Jr.

Atualizado: 18 de jul.

"Tudo tem seu tempo" costumam dizer por aí. Essa sábia lição tem, dentre suas várias funções (além de acalmar uma criança inquieta), fazer reconhecermos a processualidade das coisas.


Tudo tem seu tempo, mas estamos todos sem tempo nenhum! Eu só tenho o "tudo". Tenho coisas aqui na minha caixa pra organizar. O Laboratório Criativo está quase saindo do forno; Estamos bolando alguns planos e logo queimaremos a cabeça de tantas ideias de criação de personagens juntos! (Atualização: O Lab foi lançado! Confira aqui a aula gratuita!!).


Fora da Caixa queimando a cabeça (e o processador do computador) pro lançamento do nosso Lab!

Estar cronicamente online e encaixotado tem me feito pensar muito nessas coisas - e no tempo necessário para organizá-las. Burnout tem se colocado como regra. Ouço relatos de amigos falando que não tem tempo para os amigos - ou para finalizar projetos. Tudo parece tão perto e, ao mesmo tempo, tão distante! Mais alguém se sente assim?


"O amor é fogo que arde sem se ver" já dizia Camões. Mas eu quero falar desse outro fogo que arde vivo cada vez mais por aí. Alimentamos ele sem querer. Pensou que eu estava falando do ódio? Esse aí queima a olhos vistos junto, também, mas não: estou falando da apatia.


Lentamente vamos cozinhando esse modo de estar no mundo. Qual será o motivo? Penso que somos ensinados desde pequenos de que o lugar das coisas (mais do que o tempo) é o que importa. Eu poderia falar aqui sobre como nossos corpos são docilizados*, formatados em determinados gestos, posições, cargos e ambientes, mas prefiro deixar isso para os filósofos. A questão é que deixamos de elogiar o que gostamos ou, até mesmo, falar algo sincero. Uma boa discussão acalorada, um bom emoji de foguinho, uma texto inspirador que faz a ponta do lápis quebrar.


Mark Fisher, em seu livro "Realismo Capitalista", dá algumas pistas sobre como nos culpabilizam sem ter como reagir a uma série de ações sistemáticas de registros e formas de controle social. Somos sempre forçados a individualizar a culpa pelo ócio e pela exigência de produtividade. Ele levanta a seguinte questão: "como ultrapassar a cultura de moribunda conformidade monótona que resulta de uma recusa a desafiar e educar?"**. A fogueira que ele quer criar em praça pública é a de que não devemos voltar ao autoritarismo como forma geral de comunicação e criação, mas também precisamos reconhecer que relações tão horizontais, diversas e instantâneas necessitam de alguns valores ou fluxos de afeto para que vida flua. E por vida eu quero me referir - junto com o autor - a movimentos políticos, sociais e relacionais mais livres. Quais valores estão em jogo? Na grande queimada da vida, esses valores de desafio e educação me parecem, sim, essenciais. Desafio no sentido de superar medos e igualdade de oportunidades, mais do que competição ou mérito individual. Educação no sentido de aperfeiçoamento cultural e pensamento crítico. Queime calorias pra melhorar a saúde e a estética do corpo, mas queime alguns neurônios também!


Enfim, como analisamos o sistema de coisas que nos limitam e as potencialidades do que está por vir? Ser ousado é pensar a educação estética nesse sentido. Ela está na forma como nos relacionamos com nossas referências, com nosso público (sejam fãs ou haters) e com nossas criações. Como vendo meu trabalho? Que sensações quero causar? Elas são autênticas? Elas provocam? O quê?





Deslizando pelas redes eu me deparei com um artista que me despertou esses sentimentos pirográficos. Ele postou em seu Instagram que está fazendo uma série de ações "Queima de Acervo" com o objetivo de queimar suas obras que não forem compradas durante a ação. Qual o sentimento que dá combustível a esse tipo de relação com o público e com o próprio trabalho? Resolvi perguntar pra ele:


Eu te conheci na Criativa - Feira de Artes LGBTQIAPN+ na programação da V Transforma - Festival de Cinema da Diversidade de Santa Catarina e fiquei encantado com a sua delicadeza no cuidado em como expor suas obras e, principalmente, pela ousadia delas. Desde então te acompanho na redes e admiro muito teu trabalho. Vou começar botando fogo no que importa: Como tem sido ser artista? Como você analisa os teus processos criativos?

Nestor: Parece um disco arranhando, mas muito comum entre nossa classe. Uma parte grande dela pelo menos: mas não tem sido fácil.  Também carrego um clichê que é: não saberia muito o que fazer se não fosse artista. Pra além da pintura até - porque outras coisas também me interessam e penso muito sobre explorar outros lugares - e as sementes estão sendo espalhadas mas não sei muito o que poderia fazer se não fosse isso. Se não fosse artista. Tem muita coisa mudando. Sinto que tem algo sendo deixado pra trás na forma como eu trabalho. Não sei muito apontar porque tô no meio de um turbilhão de sensações, de vontades. Mas sei que as coisas não serão mais como antes. Crise dos 40? Kkkkk



Como estão sendo as ações do "Queima de Acervo"? De início pensei que você queimaria prints pequenos, mas depois vi obras grandes e os originais (e a comoção que isso gera). De onde veio a ideia das ações? Como está sendo a reação do público?

Nestor: Muita gente não entendeu muito que a queima não era só uma questão de descontos mas sim algo literal. Só entenderam mesmo quando rolou a primeira fogueira hahaha. Mas pra começar a falar da “queima de acervo” é preciso voltar pra 2020/2021 - ninguém pode dizer que saiu ileso desse período, de tudo que a gente começou a viver naquele momento e o pós - somado aos anos que a gente tava experimento politicamente - e que a gente ainda ao falar sobre, sente um certo gosto amargo na boca. Eu não vivi nem de perto o pior dos cenários por conta da pandemia, mas mesmo assim esse período mexeu de muitas formas com muitas coisas internamente, no modo de me enxergar e enxergar meu trabalho. 


Em 2023 eu começo a participar do Impossibilidade de Esgotamento - que é um grupo de investigação em processos artísticos contemporâneos coordenado pela artista, curadora e pesquisadora Kamilla Nunes que amplia a forma de expressão do meu trabalho, me aponta novos caminhos, essas vivências somadas a uma insatisfação com o próprio trabalho e com o mercado culmina nesse momento da queima em 2024.


A queima é uma espécie de performance virtual, uma insatisfação com o próprio trabalho, um ato de destruição pro novo que virá. Vira? Mas também a queima é um grito.  Um pedido de socorro. Nós artistas estamos sempre nessa corda bamba. Tenho produzido ativamente desde 2008, sou um artista com uma carreira média, tenho vivido do meu trabalho desde então mas sempre tem esses altos e baixos pra manutenção da vida prática, dos boletos (risos). E esse ano as coisas estavam um marasmo nesse primeiro semestre. Enfim a queima veio e talvez reapareça em algum outro momento.


Da recepção do público acho que foi melhor do que talvez eu tenha pensado que poderia ser.  Eu estava mesmo disposto a queimar tudo que eu ia por pra “jogo”. Eu tinha em mente destruir 70 trabalhos em 7 ações que aconteciam a cada 24h. No fim foram 80 trabalhos no total. Entre desenhos, aquarelas e xilogravuras, gravura sem metal e o último um caderno de esboços com 100 páginas. O saldo final foram: 44 vendidas / 35 destruídas. Me surpreendeu a adesão das pessoas. Tanto pessoas próximas mas também colecionadores do Brasil todo e um da Bélgica. Muita gente me escreveu também preocupada achando que era um surto. Que eu tava desistindo da carreira. Rolou de um tudo hahahah mas eu tava muito tranquilo quanto a destruição desse acervo. 



Estamos falando aqui sobre atitudes ousadas que inspiram transformações nas relações comerciais, relacionais, com sua própria arte etc. Fica à vontade para deixar uma mensagem, gratidão, protesto ou faísca de questionamento para botar lenha em alguma discussão:


Nestor : Desistam enquanto podem! 





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homem loiro de 40 anos com camisa verde em frente a varios de seus quadros com conchas
Fotógrafo: Roberto Abreu

Conheça o trabalho de Nestor Jr (antes que ele queime tudo): Instagram @nestorjrarts




* Foucault, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. 20ª Ed. – Petrópolis. Editora Vozes, 1999.

** FISHER, M. Realismo capitalista. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.020.



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